segunda-feira, 25 de agosto de 2008

amor e água

«Quando tenho de atravessar grandes distâncias americanas, gosto de observar uma dieta rigorosa de estações de rádio locais. É um exercício sociológico extremamente esclarecedor. Por exemplo: quando se viaja através da faixa que se estende do Texas ao Kentucky, com estados como o Oklahoma e o Tennesse pelo meio, sabemos que estamos a atravessar o chamado «Bible Belt». Este fervor religioso manifesta-se vigorosamente na rádio. Nunca tinha apanhado tantos postos seguidos dedicados exclusivamente a Jesus. No Tennesse, palavra de honra, até apanhei um programa chamado «Intimidade com o Todo-Poderoso». Foi curto, derivado às interferências, mas impressionante.
Outros estados especializam-se em dar-nos amostras dos seus legados culturais. No Louisiana, onde a humidade desse dia era de cem por cento, apareceu-me um posto também cem por cento. Cem por cento «cajun», alquimia bizarríssima de francês, inglês e crioulo africano. Os pântanos incríveis do Louisiana são ainda mais incríveis por detrás da cortina translúcida do nevoeiro, e neste posto todas as músicas são «zydagos», cheios de acordeões e rabecas ou derivado, e o DJ fala «cajun» com todo o entusiasmo do mundo. Tipo «ce nouvel ann new year's eve vennez au Couch City ou vous aurez the best beaux bargains du monde and God bless the U.S. of A.».
No Texas, o caso é outro. Hoje, o rio Mississipi era uma nuvem branca espalhada por baixo da ponte, com milhares de garças a voarem por cima. A oeste do Mississipi começa o Texas. Dá-se por isso porque, em vez de «Wellcome to Texas», vê-se uma placa que diz «D'ont mess the Texas». Isto porque os tipos do Texas são duros, como toda a gente sabe; e é também um aviso de que quem deitar lixo para a estrada paga quinhentos dólares de multa.
Já é noite cerrada e eu vou entretidíssima a ouvir um posto «tejano», onde o ridículo esplendoroso da língua castelhana pontua com galhardia valsa atrás de conga e rumba atrás de salsa. A noite adensa-se e o legado cultural torna-se enfático, agora é outro posto, e são canções de mariachis umas atrás das outras. É interminável a noite das auto-estradas do Texas. A certa altura tenho de deitar o pé ao travão porque o camião à minha frente esbarrou num coiote.
Mas seja qual for a latitude, há um ícone cultural radiofónico que brilha mais que todos os outros e que tem emissores muito mais potentes que todos os outros. Uma aposta em como não é possível atravessar um único recanto dos Estados Unidos sem a rádio captar um posto de «country-western».
Desta vez, o primeiro posto apareceu logo na transição entre a Florida e o Alabama, com músicas a pedido. É espantosa a velocidade com que se decora o refrão de uma «country song». Eu decorei logo uma que era muito pedida, aquela do tipo que, quando está com a namorada, gosta de fazer as coisas «Cadillac style». E delirei com esta pérola da cultura, de outro homem: «I've been a catcher/ and a go-go-getter/ bad-ass SOB»; mas agora o infame tinha decidido limpar-se e voltar para a esposa legítima que era uma santa, só que tinha um pequeno problema: «Life ain't funny since I ain't been drinking». Ao que qualquer mulher poderia ter respondido com aquela que também estava a dar imenso: «What part of NO don't you understand?/To put it plain and simple, I'm no one-night stand.»
Isto fez-me reparar num pormenor curioso. Há uma quantidade enorme de «country songs» elaboradas em torno dos famosos «one-night stands». Primeiro não se dá por isso, mas às tantas nota-se que esta gente canta coo se todas as noites fossem feitas de engates em parques de estacionamento ou «honky-tonks» de toda a espécie, com estranhos que nunca se voltam a ver na vida. Ouvindo isto em tantas variações, em tantos dias seguidos, até parece que a SIDA nunca chegou a estas paragens do mundo.
E, por causa disto, lembrei-me de outra coisa. Um etnólogo passou uma grande quantidade de tempo com um grupo de índios, navajos, se não me engano, para estudar as suas canções. Gravou centenas delas, e aprendeu a decifrar-lhes todas as sílabas. E aquilo era tão conspícuo que teve mesmo que perguntar. Ouve lá, disse ele a um amigo navajo. Isto não deixa de ser curioso. Todas as vossas canções falam de água.Pois, respondeu o navajo. Nós, como todos os povos do mundo, fazemos das nossas canções hinos às coisas mais preciosas que não temos.Ao dizer isto o navajo franziu as sobrancelhas e fez uma pausa, surpreendido por um pensamento que ainda não lhe tinha ocorrido.Tem piada, disse ele por fim ao estudioso. As vossas canções... são todas sobre o amor, não são?»

(Clara Pinto Correia, Volta ao mundo, Janeiro de 1998)